O Passageiro



Sou o passageiro, um mero passageiro
que viaja num comboio nocturno de sonhos
que tive ontem à noite. Esperava que
o sono viesse e comecei: o comboio
esperava. A estação estava vazia, dormia
também. Havia uma rapariga que me
queria. E eu queria ela também.
Pensamos em tomar o comboio juntos,
ou apenas um café. Chamei-lhe
mamas ardentes, pois ela tinha
os bicos salientes nuns seios em
fogo. Caiu para o lado à quarta
cerveja. Meti-a na carruagem,
numa liteira precisamente preparada
para o efeito. Bebi éter em
quantidades suficientes para morrer
e adormeci finalmente a seu lado.
Tinha audácia nas pernas longas,
senti-me subir por elas acima
e prever o movimento de rins
subsequente. Também ele ficou
quente. Acordou-a o cheiro,
alguém queimava no quarto ao
lado, e o seu faro de cadela
lembrou-lhe os prazeres do vício
e ela esqueceu os do falo.
Uma mosca, apenas uma mosca,
impediu-a de sair. Tsé-tsé…
Foi uma pena pensou ela, pois
foi pensei eu já roendo o
osso femúrico da sua perna.
Depois tive uma prolepse e já
estava sozinho num comboio
a viajar para o infinito

e às vezes mais além.  

Aerofagia











Aerofagia


Se as palavras

Tivessem o peso devido,

Voavam:

Palavras leve-as o vento.

Se eu apagasse
As palavras que digo,
Deixava de as escrever:
Traição. Três dias. Trivial.

Eu sou a fera assassina
Que, voraz areófago,
Engole o indizível
Enquanto discursa opúsculos.



Símio

Dá-me um cigarro, pediu Inês, tentando disfarçar a sua cólera. Paula instintivamente pegou no maço e ofereceu-o diligentemente a Inês. Esta olhou-a desconfiada e, como que tendo a razão do seu lado, esperou altivamente. Paula tirou um cigarro do maço e alcançou o isqueiro pousado na outra extremidade da mesa. Acendeu-o ela própria e após expirar, satisfeita, uma baforada de fumo para o ar, entregou-o com naturalidade. Agora era Inês que fumava, disfarçando o seu nervosismo com leves movimentos da mão que levava o cigarro à sua boca. Por dentro sentia que o mundo todo lhe caíra em cima, mas exteriormente aparentava uma calma celestial. Por momentos olhou Paula de soslaio, apreciou a sua beleza e invejou-a. Ia pedir-lhe desculpa no preciso momento em que o telemóvel tocou. Era o seu. Tocou apenas uma vez. Pegou no aparelho e viu um número desconhecido.
Tenho de telefonar ao meu namorado. Venho já.
Paula assentiu. Ela própria já acendera um Marlboro e se recostara no sofá.
Inês não voltou. Atravessou a rua e sentou-se nas escadas de um prédio. Telefonou ao namorado e esperou.
Paula viu-a a entrar no carro do namorado e fechou a janela. Adormeceu no sofá.
Às 7 da tarde acordou com o barulho proveniente do andar de cima. Ainda é cedo, pensou. E tentou adormecer de novo. Não conseguindo, pegou numa revista, mas não conseguia ler. Ligou o televisor para logo o desligar. Tomou um duche e, enquanto se vestia, tentava decidir onde iria jantar.
Inês esperava atentamente ao fundo da rua. Escondeu-se na paragem do autocarro quando viu Paula sair do prédio. Aguardou que ela entrasse no carro.
Ao abrir a porta do apartamento, deparou-se com um papel no chão. Era um bilhete. Uma mensagem da Paula. Sentou-se no sofá e leu-a.

Inês:
Fui jantar à cantina da faculdade. Chego tarde. Se quiseres podes aparecer no Atlântico lá para as 10 horas.
Quanto à nossa discussão ao almoço, queria pedir-te desculpa, embora eu tenha razão. Perdoa-me se fui agressiva nas minhas palavras.
Até logo.
Paula.”

Inês embrulhou o papel e deitou-o ao lixo. Abriu a porta do frigorífico e tirou dois iogurtes e uma maçã. Achou-se insatisfeita e comeu uma fatia do bolo que a sua mãe lhe fizera no fim-de-semana. Ligou a televisão e fumou um cigarro. Viu o concurso do canal 1 e um pouco da novela da 4. Saiu às 10 e telefonou ao namorado.
Olha môr, hoje não saio de casa. Não, não vale a pena vires cá, tenho umas cenas para estudar. Estou bem. Não posso, a sério… Sim… Amanhã almoçamos juntos, está bem? Eu também, um beijo. Até amanhã. Tá. Xau…
Entrou no café da esquina e começou a ler o jornal. Cinco minutos depois o empregado perguntou-lhe o que queria.
Um café por favor.
O empregado voltou com o café.
Noventa escudos por favor. Obrigado e boa noite.
Obrigada eu.
Ao sair ouviu chamarem por si.
Inês! Era Paula que gritava o seu nome. Onde vais?
Não sei. Ia ter contigo ao Atlântico.
Ainda é cedo!
Sim, eu sei. Ia a pé…
Ah.
Inês sorriu.
Paula sorriu também.
Olha, Inês, queria pedi…
Não, espera, eu é que te peço desculpa.
Paula não conseguia dizer nada.
Sim, tiveste sempre razão. Eu é que sou uma cabeça dura e descarreguei em ti os meus problemas…
Deixa lá…
Não deixo lá nada! Tinhas razão: o porco não é um símio, a girafa é que é.