E fui atingido por um carro
em andamento.
Fiquei dorido,
caí forte contra um
chão de alcatrão e cimento,
e uma rapariga tentou beijar-me
na boca,
e eu gostei,
tanto que quando pude
apalpei-lhe as mamas,
na lama
que se formava
à chuva da noite
na nossa casa de férias.
Foi lá que conheci
a minha empregada predilecta.
Levava-me comida à cama,
quando eu adormecia
ao som de grilos
lá fora.
Cheirava a relva cortada
quando ela me apareceu
pela primeira vez,
e me deu um comprimido
proibido.
E eu pensei que a amava,
porque ela me amava
todas as noites.
Fui enganado,
como todos os outros.
Sentei-me na cadeira,
na sala de espera,
no hospital,
no fundo da noite
onde me destruiu
a droga
(A Droga! – disse ela alto),
Veio a enfermeira
com um comprimido,
azul.
― como se chama?
perguntei-lhe
(à enfermeira)
― Eu ou o comprimido?
disse ela.
Lembrei-me da minha ama
quando eu tinha dois anos
e estava nu
contra o chão frio
da tijoleira.
Do outro lado da porta
o meu pai tossia,
e a minha ama
castigava-me
na barriguinha.
Não devia ter 3 anos,
e segurava na mão
a mangueira
de lavar o pátio, o lá de trás.
E o jardineiro
mostrou-me
como segurá-la.
A filha dele
não dizia nada,
era muda como uma porta
fechada.
Falava-me com as mãos.
Excitava-me com os pés.
Eu não a percebia,
mas gostava,
e,
ao fim do dia,
era nela que pensava.
Era dura,
a vida naquela altura,
nos Invernos
brincávamos aos tropas,
e rastejávamos na lama.
Eu, o comandante António,
e o cabo Custódio.
Eles queixavam-se
da falsidade
das armas.
E eu dizia que:
― São apenas pormenores
(técnicos)
Mas não o sabia dizer,
tinha 7 anos
e era ignorante
como os outros.
Aos 9 anos
conheci a subtileza
da mesa
de operações.
Correu bem
disse o doutor
após 2 anos
na ala pediátrica
do hospital.
Foi teimoso em me salvar,
eu tinha a cara desfeita
dos estilhaços
das granadas
das guerras
de imitação
da bouça
da minha tia.
Eu, o comandante Simões
e o praça José.
Confiava neles,
mas apontaram-me uma arma
e deram-me um pontapé
no meio
do mato.
Estava escondido
do inimigo
imaginário.
Chegou a Março
e decidi sair
de casa.
Eram 3 meses
fechado.
A minha cara
tinha estado sarapintada.
Pensei que era varicela
mas a enfermeira Daniela
disse que não era nada.
Caí na bicicleta,
quem sabe nunca esquece,
mas eu esqueci.
No primeiro buraco
que encontrei,
caí.
Dava o Benfica-Porto
na televisão
e eu tinha ficado
num buraco
no meio do chão.
A ambulância veio
atrasada,
eu…
eu fiquei com marcas
permanentes.
Pensei que partira
o nariz,
mas foram só 2 dentes.
No hospital
perguntaram-me se morrer,
se morrer…
Eu não quis ouvir o resto.
Afectava-me.
Afecta-me!
Essa morte,
de que tanto falam.
Fiquei grávido
de ideias
de morte,
e suicídio
que planeei
todas as dores
que tive na vida,
só para me preparar.
Contudo
o medo ficou para sempre.
De carros
a levar-me no ar,
de raparigas
que há para casar,
de golos
que há para marcar.
Preferi
o sossego
do sofá,
ao domingo de tarde,
quando as famílias
não saem de casa,
e não se chateiam
umas com as outras.
Os passos que
dou,
sem segurança,
são as estreias
dos meus piores receios
de criança.
Regresso aos anseios,
àqueles que não sabia
ter,
como uma música
que volta ao refrão
só que não o tem.
É um buraco
em branco
que preenchemos
com as memórias
que não existem.
Tortas,
difusas,
factuais,
grandes,
diferentes do bonito…
Em simultâneo,
tinha 13 anos,
e cansei-me.
Na casa de férias,
junto ao mar.
Gaivotas arfavam
de prazer,
e o meu coração tremia
quando olhei pela janela
aberta.
Penetração?
Está aberta?
perguntei-lhe,
e ela disse que era
para entrar ar.
Fechei as cortinas
pelo menos.
Se me iam ver,
seriam sombras apenas.
subi o nível
da conversa
e disse ao terapeuta
que só aos 16
enfrentei
aquilo que hoje esqueci.
O meu motivo de estar aqui.
Aquilo que já não sei.
Foi culpa de meu pai,
disse-te,
mãe,
desligámo-nos,
desde pequenos.
Naquele dia
no shopping,
em que nos proibiram
a entrada.
Parecia
que já estava a ver,
quando ele me segurou
pelos colarinhos
e disse que eu
não percebi nada.
Será isso doutor?
O que quer ouvir
da minha boca?
No hospital
psiquiátrico
disfarçado
de escritório
de advogado.
O ladrão assaltou-me,
como disse à polícia,
pelas 17 horas
e 59 minutos.
Tínhamos planeado para as 6,
mas ele adiantou-se
e,
no entretanto,
vieram os vizinhos,
queixaram-se
e dispararam.
Um chumbo pequeninho
infiltrou-se
nas minhas pernas
de cobra selvagem.
Espremi sumo
de um limão
e apliquei faca fria
contra a ferida
que ficava feia
a cada minuto.
Peguei na sachola
e fiz de bengala
e dei à sola
devagar devagarinho.
A enfermeira
veio ladeira
e despachou-me
com dois abraços.
Senti-me trigémeos
tamanhos carinhos
me foram dados.
Não a conhecia
e já a desejava,
mas foi do comprimido
azul,
segundo me disseram
passado um bocado.
A terceira vez
não a posso contar,
porque foi com a minha prima,
mais velha,
e mais três amigas,
todas vizinhas,
uma morena
e duas loirinhas.
Foi uma festa de pijamas,
principalmente no meu.
Vi-me aflito
só para aguentar
o ritmo rápido
da corrida
à frente dos pais delas.
Mas a minha prima
nunca disse nada
e ninguém descobriu
que…
eu e ela…
vocês sabem
truca…
coisa e tal…
e marmelada.
Mais as vizinhas dela,
ao pôr do sol,
naquela mansão improvisada,
de fetos e folhas
no meio da bouça
de afectos e coisas
que não posso dizer.
A minha namorada
é que não descobriu.
Se descobrisse,
merda engolisse,
ou ficasse calada.
Com ela tentava
e não tinha nada.
Entretanto crescemos
e a vida,
como a julgávamos,
desapareceu
mesmo diante de nós.
Uma velhinha
disse-me um dia,
que da boa vida
só cheiramos um pouco.
Não sei se falava
de coca ou MD
ou do cheiro da massa
quando é ganha
sem fazer muito por isso.
Sei que não falava
do cheiro nojento
abjecto e dilacerante
de um hospital
à hora de ponta
de um acidente.
Que tive.
Marcou-me.
O braço.
Direito.
Abre e fecha a mão.
É o que estou a fazer.
Abre fecha abre fecha,
doutor, de que vale
se não tenho nada
a que me agarrar,
quando vier o carro
contra mim.
E ele disse
tiveste sorte.
Não é hoje ainda
que vais receber
o beijo
da morte.