Sleepwalkers

1. Insónia

São quatro da manhã. Acordo de um sonho mau. Um sonho que simplesmente é a minha vida. Mas esperem, a minha vida não é um sonho, é real demais. Antes fosse um sonho e eu pudesse acordar no dia seguinte, para um normal dia de primavera, abrir os olhos, beijar a minha linda mulher na testa, tomar um duche, pequeno-almoço com os filhos, deixá-los na escola e dirigir-me para um emprego que adoro. Essa é a vida que me espera quando acordar, por certo. Entretanto, estou metido nesta vida, à qual tenho dificuldade em me adaptar.

Não é o viver em si, não me interpretem mal. Adoro viver. Adoro. Está acima da minha vontade. É para isso que existo: viver. Pretendo fazê-lo o mais tempo possível e não tenho de dar explicações a ninguém sobre isso.

Mas já que perguntam, aí vai. Adoro aquelas coisas da vida que só com o tempo fazem sentido. Saber que aquela pessoa está lá, mesmo que não tenha de estar todo o tempo com ela. Estar 10 anos sem falar com alguém e, de repente, a meio da noite, pegar no telefone e dizer-lhe olá. Quero estar vivo daqui a dez anos para fazer esse tipo de coisas, porque, simplesmente, hoje não consigo falar com ela. Nem amanhã, nem na próxima semana. Nem nos próximos meses. Nem nos próximos anos, provavelmente.
Porque sim. Porque não precisamos de explicar todas as decisões ilógicas, estúpidas e idiotas que tomamos. Porque temos medo de magoar as pessoas com o que dizemos e então achamos melhor não dizer nada.
Faz parte da vida. E eu quero estar vivo daqui a 20 anos para lhe explicar o que se passou. Às vezes precisamos de tempo para entender aquilo por que estamos a passar. A distância é a melhor amiga do observador. Se estivermos muito perto de alguma coisa, não nos conseguimos aperceber da grandeza das suas dimensões. O planeta terra, por exemplo. Estamos tão perto dele que nem sempre nos apercebemos que é uma esfera gigantesca a girar no espaço a uma velocidade inimaginável. Se me dissessem, “queres viver num calhau em constante rotação sobre si mesmo, e a deslocar-se no espaço a 108.000 km por hora?”, eu era capaz de responder que isso, por certo, me poria mal disposto.

E, no entanto, cá estou. A curtir a viagem. E sei que quando fico enjoado, a culpa não é exclusivamente dos movimentos astronómicos do nosso planeta. Eu sei que devo ter exagerado na bebida ontem à noite. Eu sei que não posso andar na montanha-russa. Eu sei que não devo aproximar-me de um cadáver nauseabundo. Eu sei essas coisas que me deixam mal-disposto. E então, por que continuo eu a meter-me em situações que se vão virar contra mim? Só me posso culpar a mim mesmo, eu sei. Não adianta dizer que a culpa é da Terra, que se desloca no espaço rumo ao desconhecido e nós completamente alienados do facto que o universo se encontra em expansão, e que um dia isto vai acabar. Não adianta dizer que estamos tão perto dos problemas que não pensar com clareza e que só daqui a 30 anos é que vamos compreender por que estamos a agir tão estupidamente. Não adianta dizer que a culpa é da Mãe Natureza, por nos criar à sua imagem, funcionalmente imperfeitos, vivendo para além do dia de hoje, apesar de ser um dia mau, apesar das insónias, apesar de tudo, daqui a 40 anos estaremos cá para nos rirmos do passado e beijar a nossa linda e madura mulher, ao vermos os nossos netos brincar à nossa frente.

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