Num tempo em que o tabaco começa a ser quase politicamente incorrecto, congratulo-me que haja pessoas que ainda olham para o acto de fumar como um gesto de rebeldia e auto-afirmação. Afinal, a auto-determinação (ou devo dizer auto-terminação) é o último reduto do cidadão urbano contemporâneo, estrangulado em regras comportamentais sociais que assumem forma de lei! Já nos proíbem de tirarmos a nossa própria vida (e de tiramos a roupa em público também! Há alguma coisa de errado com o corpo nu de uma pessoa?) já nos proíbem de partilhar cultura gratuitamente na internet, proíbem-nos também de consumirmos "drogas" naturais que sempre fizeram parte da dieta psicofarmacológica da espécie humana, o que virá a seguir? Proibição total de fumar tabaco, beber alcóol e de ser um inútil para a sociedade (aka os grandes magnatas que querem escravos que façam as coisas que eles usam para tornar a sua vida aparentemente mais divertida)?
Ao longo da história da civilização sempre houve esta tentativa de domesticar os desalinhados, para servir os interesses da sociedade (o bem-comum). Sendo o ser humano um ser gregário, é natural que aconteçam estes mecanismos de auto-regulamentação inconsciente. Afinal, é preciso dar continuidade ao adn colectivo, perpetuar a espécie, dominar o mundo. Penso que não há dúvidas, no início do século XXI, que isso foi amplamente conseguido, com consequências muito graves para os outros co-habitantes do planeta (i.e. as formas de vida inferiores e negligenciáveis, as quais presumimos serem propriedade do Homem - ver Livro do Génesis), e para o planeta em si. É esta determinação cega em perseguir a expansão e desenvolvimento colectivo (uma falácia facilmente desmontada), que tem vindo a impedir que as pessoas que estão no poder (que expressão tão vã! coitados dos poderosos no dia em que morrerem...) vejam que nos dirigimos para o suicídio colectivo. Somos como lemmings que falham em ver que o caminho para a terra prometida foi adulterado pela conjuntura.
Mas divirjo. Falava das leis interpretativas do mundo que os "iluminados" foram criando ao longo dos tempos para defesa dos valores que (consoante a época) fossem vitais à perpetuação e vitória épica da Humanidade. Algumas são tão lógicas que escapam à nossa observação. Não deviam ser precisas leis que digam que o incesto é uma coisa má, ou que matar pessoas (inocentes ou não) é imoral, ou que violar uma criança inocente é condenável, mas essas leis existem, como que para nos fazer lembrar que somos um ser falível e, acima de tudo, com ideias próprias, com livre-arbítrio, que acha que pode fazer tudo o que quer (porque não haveria de o poder fazer?) - Para isso foi criado Deus, uma espécie de consciência colectiva omnisciente e omnipotente, que administrava castigos eternos aos prevaricadores, mas tudo mudou quando Deus foi declarado morto: tudo está ao nosso alcance, tudo é permitido. Aquilo que só os esclarecidos Napoleões e Raskolnikovs deste mundo acham poder fazer sem serem objecto de julgamentos morais, está hoje disponível para nós, os comuns-mortais. Mas se até eles se arrependeram, what's to become of this boy? (Nota curiosa: eu coleccionava maços de tabaco vazios quando era criança, carreguem aqui e aqui para ver uns designs muito loucos!)
Livres então de constrangimentos morais sobre o acto de inalar uma substância que nos pode matar (não podem todas?), preocupemo-nos acima de tudo com a moralidade de, no processo, empresas multinacionais estarem a lucrar milhões à custa disso, já para não falar no estado que cobra 70 por cento de impostos sobre o preço final, alertando por um lado para os riscos e malefícios do tabaco, e por outro enchendo os depauperados cofres públicos. Mas a culpa é de todos nós: O estado é hipócrita. Nós somos o estado. Logo, nós somos hipócritas.
Não vou fazer juízos de valor sobre se fumar é bom ou mau. Não há verdades absolutas. Por cada sim há um não. Veja-se o caso do álcool: é considerado por muitos conservadores e fanáticos da bíblia um malefício de dimensões extraordinárias, mas são essas pessoas que falham em reconhecer que na própria bíblia, logo no início dos inícios, pouco depois de o Homem ter sido expulso do Paraíso, o vinho foi inventado para aliviar a tortura do trabalho físico (Génesis 5, 29), servindo entretanto para que as duas filhas de Lot embriagassem o pai, de modo a serem emprenhadas por ele, e assim dar continuidade ao clã (Génesis, 19, 32).
Posso é sugerir que vejam os filmes "Thank You For Smoking" de Jason Reitman, "Smoke" de Wayne Wang e Paul Auster e "Coffee and Cigarettes" de Jim Jarmusch.
Especial atenção à música de abertura do hilariante e descomplexado, por vezes politicamente incorrecto, filme de Jason Reitman, "Smoke! Smoke! Smoke that Cigarette", cantada por Tex Williams:
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